terça-feira, 14 de junho de 2016

O FILME CAMPO GRANDE

 
 
Campo Grande em desencontros
Por Vagner Gomes de Souza
 
Sentimos que há uma série de desencontros quando sobem os letreiros do filme Campo Grande (Direção Sandra Kogut). Tecnicamente há um roteiro original que poderia nos supreender ainda mais. Contudo, tudo poderia se explicar pelo desencontro com outros referenciais do cinema nacional. Talvez propositadamente, para não parecer que se faz o "mais do mesmo" em nossa produção cinematográfica, a Diretora deixa muitas linhas desencontradas na narração. Todavia, os desencontros do desenvolvimento do roteiro podem servir para uma amplo leque de interpretação.
 
No tempo de uma mudança de apartamento da classe média de Ipanema, motivada por um divórcio, surgem duas crianças que se desencontraram de sua mãe. Diante de um bilhete de loteria com o nome e endereço da moradora emerge um exemplo da dificuldade de nossa classe média carioca em compreender nossos problemas sociais no dia a dia. Afinal, o olhar da moradora Regina (Carla Ribas) é de perplexidade ao ouvir na boca do menino Igor que mora em Campo Grande. A empreganda doméstica logo sai com a frase em auxílio: "Campo Grande é muito grande!"
 
Esse desencontro da periferia carioca com a Cidade Maravilhosa se espelha num diálogo distante entre uma adulta e o casal de crianças. A primeira saída é sempre buscar passar adiante o "problema". Não olhar nos olhos das crianças com um olhar de integração. O apartamento está sendo esvaziado como os corações de muitos cariocas. O tempo urge e não se tem tempo para resolver esses desencontros de "menor abandonado". O Serviço de Atendimento do Cidadão da Prefeitura é uma sequência de gravações mecanizadas como a engrenagem weberiana de uma gestão rotinizada. Um exemplo de cidadania robotizada que muitos da classe média se deixaram conduzir nesses tempos de mudanças conservadoras na paisagem urbana carioca.

 
Saudades da Professora Dora do filme Central do Brasil (Walter Salles, 1998) que abraçou a ideia de buscar o pai de Josué no Nordeste brasileiro. Em Campo Grande, Regina está quase que apática remoendo seu drama particular de uma separação que lhe afasta de sua filha e de uma vida já toda arrumadinha. Sua filha, Lila (Julia Bernat), testemunha a falta de iniciativa de sua mãe em procurar uma solução para as crianças. O público assiste tudo com um sentimento de alta tensão ao testemunhar o desencontro entre seus desejos e a realidade, enquanto que cenas de gravações externas exibem em tom, quase de documentário, as mudanças nas vias urbanas do Rio de Janeiro que seriam um legado dos eventos esportivos de 2014 e 2016. Tudo em rotinização sem que o elemento do Amor quebrasse essa lógica.
 
Então, a magia da música aparece numa canção. Lila canta "Love" de John Lennon para o menino Igor. Será ela a pressionar sua mãe para que vá procurar a avó das crianças. Num primeiro momento, ela sairia por conta própria como se fossa a volta dos tempos jacobinos de nossa juventude carioca. Mas a mãe alerta: "Você não sabe de quem se trata essa gente!" Então, na sequência, estará Regina e Igor numa Avenida Brasil em obras. Um silêncio sobre a ausência de Lila. Um novo desencontro. Pois Igor tinha comentado para a jovem intérprete de "Love" que ela deveria ser Professora. De fato, ela não seria a Dora de nossas lembranças. Uma juventude que pensa de forma crítica mas não participa dos momentos decisivos da luta pelo encontro de duas partes de nossa cidade.
 
Até chegar ao "Titanic" (conjunto de prédios invadidos em Campo Grande), há uma fotografia que leva o público para os detalhes do bairro de Campo Grande ao atravessar o túnel de pedestres no sentido que muitos moradores chamam de "Lado B de Campo Grande". Campo Grande já foi o "Sertão Carioca", porém aqui temos mais um desencontro entre os seus personagens e a antropologia social do bairro quanto ao fator religioso num momento em que apareceu a música "Talismã" de Leandro e Leonardo. Magia e religiosidade caberiam muito bem nesse instante.
 
Entretanto, podemos reconhecer que há duas músicas fortes no filme, porém com contínuos desencontros o qual melhor se ilustram numa cena do filme. Trata-se do instante que apare uma placa numa obra: "Aviso: Acesso Bloqueado". Assim, vivem os moradores da Zona Oeste carioca em relação ao chamado legado urbano das Olimpíadas. A cena desse desencontro vale muito nesses tempos de modernização sem coração.
 

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